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Medicina Veterinária do Coletivo

Medicina Veterinária do Coletivo: promovendo a saúde por meio da estratégia de saúde única

Texto extraído na íntegra do Livro Medicina Veterinária do Coletivo: Fundamentos e Práticas.

Garcia R, Brandespim D, Maldonado N. Medicina Veterinária do Coletivo: promovendo a saúde por meio da estratégia de saúde única. In: Garcia R, Calderón N, Brandespim D. Medicina Veterinária do Coletivo: Fundamentos e Práticas. Ed. Integrativa, São Paulo, p.30-33, 2019.

A Medicina Veterinária do Coletivo (MVC) é uma nova área multidisciplinar  da Medicina Veterinária1 que utiliza conhecimentos da Saúde Coletiva, da Medicina de Abrigos e da Medicina Veterinária Legal[a] para promover a saúde e o bem-estar dos indivíduos, família, comunidades e entorno, considerando os animais como parte integrante e indissociável dessas representações e gerando diversas possibilidades de interação com outras disciplinas e novas áreas para atuação do profissional. MVC é mais abrangente do que o Shelter Medicine[b], já reconhecido pela Associação Veterinária Americana[c], pois extrapola as políticas internas dos abrigos e as externas relacionadas com o manejo populacional de cães e gatos (MPCG) e suas demandas. O MPCG é um dos grandes temas na área da MVC, pois é um problema de saúde pública e que também envolve as áreas de medicina de abrigos, podendo ter consequências forenses[d]. Entretanto, a MVC vai além dessas práticas.

O mundo em desenvolvimento tem sofrido importantes mudanças sócio-político-econômicas que geram um quadro de extremas iniquidades sociais. Entender essa situação e como enfrentá-la é um desafio de grande complexidade que necessita de conhecimentos e abordagens diferenciadas por equipes multiprofissionais e interdisciplinares. Deve-se compreender não somente sobre as doenças e agravos à saúde que atingem uma determinada comunidade, mas também os grupos mais vulneráveis, os riscos mais relevantes e os mecanismos efetivos para o enfrentamento. Deve-se, portanto, considerar os determinantes sociais para o entendimento dos problemas e desenvolvimento das práticas e saberes relacionados à promoção, proteção e manutenção da saúde, de acordo com os conceitos atuais de saúde. A MVC envolve uma atuação da medicina veterinária com entendimento do complexo social e suas demandas políticas, econômicas, sociais e educacionais existentes em todas as comunidades e territórios, visto que essas demandas não são apenas problemas humanos, pois refletem sobre a vida dos indivíduos, famílias, comunidades e seus animais. As desigualdades sociais, as estruturas socioeconômicas e políticas impactam todos os seres, inclusive os animais que fazem parte da nossa sociedade e são impactados pelos seus problemas direta ou indiretamente.  Há necessidade de um olhar mais amplo, observando as diferenças, além de repensar as nossas condutas e o que queremos para o futuro, assim como remover restrições, renovar e ampliar saberes, integrar programas e estratégias para o bem comum onde humanos e animais compartilham o mesmo ambiente.

A ampliação de saberes e a intersecção das estratégias multiprofissionais para a promoção da saúde exige um reconhecimento da importância dos animais na vida dos indivíduos, famílias, comunidades e entorno, por todos os profissionais de saúde, além do médico veterinário. Um reconhecimento de que o convívio com os animais pode impactar a qualidade de vida dos humanos positiva ou negativamente, na dependência de como são criados, mantidos e, também, na dependência da qualidade das interações humano e animais, pois a conquista de uma vida saudável relaciona-se com os elementos físicos, psicológicos e sociais das condições de vida2. Compete às práticas da saúde coletiva criar estratégias capazes de evitar a exposição a riscos e subsidiar a criação de  políticas pelo poder público, direcionadas à  promoção da saúde que permitam aos sujeitos maximizar a capacidade que cada um possui para tolerar, enfrentar e corrigir as infidelidades do meio que inevitavelmente conformam suas histórias. Também compete às práticas de saúde um olhar abrangente sobre as diferentes formas de interação  entre humanos, animais e ambiente, pois impactam a qualidade de vida de todos os envolvidos. A saúde não é apenas segurança contra riscos, mas também a possibilidade de superação das condições e das capacidades iniciais de lidar com os desafios[e].

Uma primeira percepção para a MVC reconhece que fazer parte de uma família inclui compartilhar o mesmo ambiente, os mesmos problemas e as mesmas vulnerabilidades que a família possui. Essa percepção, quando voltada à prevenção e controle de zoonoses ou dos agravos e doenças não transmissíveis, como no caso da violência doméstica, já oferece ao animal de estimação um novo olhar, pois ele funciona como um sentinela auxiliando no diagnóstico ampliado da situação familiar. A busca, portanto, é para estabelecer ou reconhecer um conjunto de processos interativos dos diferentes fatores que explicam as interações humano, animal e ambiente. Isso demanda o atendimento das necessidades humanas com uma abordagem social, com o conhecimento dos equipamentos sociais existentes no território para o encaminhamento de famílias em situação de vulnerabilidade, interagindo com os Centros de Referência de Assistência Social Básica (CRAS) especializada, fortalecendo as estratégias, as abordagens, integrando saberes para melhor resolutividade. Também demanda a integração das práticas da vigilância em saúde e estratégia de saúde da família, responsáveis pelo atendimento de denúncias de maus-tratos e seus desdobramentos relativos à identificação das vulnerabilidades familiares, em especial à violência doméstica. Há necessidade, portanto, do conhecimento das políticas nacionais, estaduais e municipais relativas à saúde e assistência social para uma abordagem sistêmica durante as práticas do profissional da MVC, sendo um divulgador dos benefícios, serviços programas e projetos assistenciais oferecidos pelo poder público.

Uma segunda percepção para a MVC refere-se a importância do vínculo e das interações humano-animal, com o reconhecimento dos seus benefícios e riscos (identificando as suas desordens) e como esse vínculo movimenta as vidas dos indivíduos, famílias e comunidades. Há evidências consistentes sobre os benefícios emocionais e sociais das interações humano-animal, onde também os animais podem oferecer apoio ao tratamento de um grande grupo de patologias humanas. O animal de companhia pode beneficiar o desenvolvimento emocional, cognitivo, comportamental, educacional e social das crianças3. Para os idosos, servir como fonte de conforto e motivação para sair, fazer exercícios e socializar. Os benefícios dos animais de companhia e sua importância na vida das pessoas geram cada vez mais o interesse dos profissionais da ciência social criando-se disciplinas como a antrozoologia e estudos humano-animal, além das intervenções e terapias assistidas pelos animais em diferentes níveis, com enfermos, prisioneiros, etc4-7. Mas quando as interações não envolvem os preceitos da MVC relacionados à promoção, proteção e manutenção da saúde, como no caso dos acumuladores e abandono de animais, podem ser prejudiciais aos ser humano e à comunidade.  

MVC é, portanto, uma área que se utiliza da construção coletiva para contribuir com a promoção da saúde integral e harmônica do ser humano, animais e ambiente, atendendo aos aspectos da prevenção e controle de enfermidades transmissíveis (zoonoses) e outros agravos, como os não transmissíveis (acidentes por animais peçonhentos, violência interpessoal, ataques e mordeduras por cães e gatos, entre outros), intervindo na mudança de atitudes do ser humano e na mobilização social.  A partir dos saberes da MVC, espera-se contribuir com o desenvolvimento e ampliação dos conhecimentos para a participação ativa e democrática dos profissionais e demais pessoas  envolvidas no planejamento e execução de programas e estratégias nas comunidades ou em famílias, destinadas a melhorar a qualidade de vida dos humanos e seus animais, e do equilíbrio ambiental. O processo de atuação se caracteriza em forma de rede ou de constelação, sendo as atividades interligadas, em caráter de concomitância. É, portanto uma área de aplicação da estratégia de saúde única, que envolve todos os profissionais que atuam em um determinado território ou comunidade, considerando os diferentes níveis de organização da sociedade. Ao nível de prática, colabora para formular, analisar e auxiliar na implantação de ações preventivas que objetivam eliminar e/ou controlar os elos da cadeia epidemiológica das doenças transmissíveis e demais agravos, seja no ambiente físico ou social ou no meio interno dos seres vivos afetados ou suscetíveis, por meio de ações com abordagens interprofissionais e intersetoriais, considerando os determinantes sociais.

É uma área de atuação interprofissional e intersetorial, se estruturando nos princípios da estratégia de saúde única. As intervenções se constroem na articulação com os diversos setores (saúde, social, ambiental, educação e agricultura, entre outros) e atores sociais (gestores, profissionais de saúde, instituições de ensino, ONGs, setor privado e sociedade civil em geral)  para o enfrentamento dos problemas e definição de estratégias, necessitando de agilidade, criatividade, organização, mobilização e boa comunicação. Atua com o primeiro, segundo e terceiro setores, seja na área da educação, saúde, meio ambiente ou ciências sociais. No primeiro setor, o privado, o envolvimento dos médicos veterinários clínicos de pequenos animais ou mesmo de empresas da área do segmento animal, pode ser fundamental para desenvolvimento de ações. No setor público, segundo setor, além das prefeituras, interage também com órgãos da polícia civil e ministério público; e no terceiro setor, principalmente com a sociedade civil organizada de proteção animal. Integra também uma organização das atividades de diferentes especialidades envolvidas no processo para a tomada de decisões e de desempenho das ações. Resultaria, portanto, em um campo comum de troca de experiências e difusão dos saberes, respeitando-se a autonomia operativa de cada especialista envolvido na intervenção. A formação do profissional médico veterinário para a atuação na MVC está relacionada não especificamente à um campo do conhecimento, saber ou subárea da medicina veterinária, como por exemplo, as clínicas cirúrgica ou médica dos animais seja de pequeno ou grande porte, a produção e reprodução animal ou medicina veterinária preventiva, mas sim a interlocução entre todas as disciplinas, por meio da multi,  inter e transdisciplinaridade, que compõem a matriz curricular dos cursos de medicina veterinária, a partir da articulação e diálogo entre elas, envolvendo principalmente os aspectos da etologia aplicada, bem-estar animal, bioética, epidemiologia, controle de zoonoses, saúde coletiva, clínica médica, doenças infecciosas, medicina veterinária legal, entre outras, para atuação relacionada aos objetivos e propostas da MVC. O profissional precisa de uma base sólida durante a graduação e conhecer os fatores relacionados aos aspectos socioeconômicos, filosóficos e sociais, determinantes sociais da saúde das comunidades; políticas públicas relacionadas às áreas da saúde e ambiente; qualidade de vida humana e bem-estar animal. Também realizar qualificações específicas e aprimoramentos constantes, relacionados à intersecção animal-humano-ambiente, colaborando permanentemente, para o desenvolvimento da MVC e da saúde. A atuação do profissional em MVC tem que ser propositiva e, para isso, deve integrar as múltiplas faces e expressões da realidade, possuir a capacidade de conhecer, investigar, antecipar, propor e executar alternativas de enfrentamento dessa questão na ótica dos interesses da coletividades e dos animais, com entendimento das questões sociais e suas formas de expressão.

A área preenche uma lacuna que existia entre a saúde pública, coletiva e o bem-estar dos animais, e obtém o reconhecimento dos profissionais, da sociedade e da academia como fundamental para a aplicação da estratégia de saúde única, que compreende os seres humanos, os animais e o meio ambiente.

MVC é um convite para alargar os horizontes técnico-científicos e delimitações das políticas públicas. Não delimitar a esfera de atuação, mas sim atuar em um sentido amplo de visão da promoção da saúde e todos os atores sociais envolvidos, e além dessas possibilidades. MVC é compartilhar saberes, dividir as práticas, ver em outras áreas inúmeras possibilidades de integração e interação.  É um novo olhar sob a perspectiva de todos indivíduos que compõem uma comunidade[f]. É um processo educativo e social. Educativo porque diz respeito à mudança de comportamento; é social, porque é realizado com grupos humanos influenciados pelos determinantes sociais; e pode ser um método quando considerada um caminho de escolha para a obtenção de fins desejados[g]

Ciência, técnica e a arte destinada à promover a saúde reorientando condutas, buscando melhor racionalidade, respondendo às novas demandas da sociedade e da sua interação com os animais.

Diante desse contexto, que enfoca o conceito e aplicações da MVC, é importante que os profissionais tenham conhecimentos, portanto, sobre a formação e atuação do médico veterinário na saúde pública e saúde coletiva, as suas funções e ações relacionadas às práticas de vigilância e atenção primária em saúde; o manejo populacional de cães e gatos e transtornos que envolvem as relações humano-animal; a medicina de abrigos e medicina veterinária legal; e também sobre a educação humanitária, possibilidades de capacitação, além de conhecer as experiências exitosas já realizadas na área, como descritas nos capítulos desta obra.

Referências

  1. Garcia RCM, Calderón Maldonado NA. 2009. Medicina Veterinária do Coletivo: um novo desafio para os veterinários. Clínica Veterinária, Ano XIV, n. 82, setembro/outubro, 2009.

Czeresnia D, Freitas CM. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. 1. ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003. 176 p.

  • Czeresnia D, Freitas CM. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. 1. ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003. 176 p.
  • Muller C. La infancia entre perros y gatos. Ed. Paidós, España, 1995
  • Becker M. El poder sanador de las mascotas. Grupo Editorial Norma, Bogotá, 2003
  • Cusack O. Animales de Compañía y Salud mental. Fondo editorial Fundación Purina, Barcelona, 1991
  • Demello M. Teaching the Animal. Human-Animal Studies across the Disciplines. Lantern Books, New York, 2010.
  • Fine A. Nuestros fieles compañeros, explorando la esencia de nuestra relación con los animales. Ed. KNS, España, 2015

[a] Garcia RCM. 2014. Definição da área de Medicina Veterinária do Coletivo. Universidade Federal do Paraná. https://agrarias.ufpr.br/mvc/medicina-veterinaria-coletiva/. Acesso em 31/3/2019.

[b] Definição de Shelter medicine da Association of Shelter Veterinarians (ASV): área dedicada para cuidar dos animais abandonos em abrigos ou outras estruturas dedicadas a encontrar novos lares para eles. Disponível em: https://www.sheltervet.org/assets/docs/smp-faq-final-2013-may.pdf. Acesso em 30/3/2019

[c] American Veterinary Medical Association (AVMA) reconhece a especialidade de Shelter Medicine em 2014: https://www.avma.org/News/JAVMANews/Pages/140601a.aspx

[d] Garcia RCM. 2014. Definição da área de Medicina Veterinária do Coletivo. Universidade Federal do Paraná. https://agrarias.ufpr.br/mvc/medicina-veterinaria-coletiva/. Acesso em 31/3/2019

[e] Caponi, 2003   apud Czeresnia; Freitas, 2003. Saúde como abertura ao risco. Introdução, p. 11.

[f] Comunidade: um grupo humano, vivendo em área geográfica contígua, caracterizando-se por uma trama de relações e contatos íntimos, possuindo a mesma tradição e os mesmos interesses, mas a consciência da participação em ideais e valores comuns. (Sociólogo José Arthur Rios)

[g] Reflexões feitas a partir do texto de Maria de Lourdes Rodrigues, enfermeira: “Aspectos teóricos do trabalho de desenvolvimento de comunidade e da participação da enfermeira no mesmo”

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