O professor Luiz Doni Filho, autor do livro “História da Escola Agronômica do Paraná – 1918-1993”, lançado pela Editora UFPR em 1995, foi um dos homenageados do evento dos 100 anos da Escola Agronômica do Paraná, realizado no dia 5 de abril deste ano. Apesar de não ter podido comparecer à comemoração, o professor Doni enviou um texto inspirado sobre suas memórias na instituição. Confira a íntegra dessa crônica abaixo:
“Eu estou nesta Escola desde o início de 1966. Me aposentei neste ano de 2008. É preciso que vocês se ambientem com como era isto aqui. Era antes de 1940 uma escola de capatazes. Em regime de internato e semi-internato. 700 alunos. Tinham aulas teóricas e práticas. Vinham do campo, lavavam-se ali onde tem essa caixa de água, em baixo vocês podem ver ladrilhos dos antigos banheiros. Entravam e iam para as refeições.
O lado de lá era a cozinha refeitório e serviços. E cima salas de aula. Na parte frontal a sala dos professores e administração. Do lado de cá toda parte de cima era o dormitório, aqui em baixo mais salas, uma chama a atenção: esta aqui onde hoje é o xerox. Reparem que ela tem duas portas, ou o que resta delas. A de dentro era de ferro. Pois é.
Aqui por fora havia uma fileira de hortênsias em toda volta do prédio.
A cozinha era ampla, para conta de tanta refeição. A geladeira do tipo que se punha gelo em barra, distribuído por carroças.
Um dia eu ouvi rumores de que uma funcionária, ao chegar para o trabalho, antes das sete numa manhã de cerração, encontrou um fantasma por volta deste prédio. Eu me lembrei da história do professor e fui olhar, a planta original deste prédio que era. Conferia tudo, afinal o professor Bonin foi o diretor da Escola de Capatazes, antes de ser Escola Agronômica do Paraná. Eu nunca falei do assunto, mas, resolvi contar, para explicar e para apaziguar os ânimos das pessoas que naturalmente ficam assustadas com tais aparições, não que eu acredite nelas… necessariamente…
Quando pesquisava a história da Escola Agronômica do Paraná, achei a descrição e a planta original do prédio Carlos Cavalcanti. Era, e continua sendo, uma construção robusta, ampla, que servia para abrigar 700 menores em regime de internato e semi-internato. Na parte da frente ficava a administração. À direita no primeiro andar ficava o imenso dormitório, com camas enfileiradas, na esquerda ficavam as salas de aula. No andar térreo ficavam a cozinha, depósitos, áreas de serviço, lavanderias. Em baixo dos dormitórios mais salas de aula, almoxarifado, sala de contenção e sanitários. Na parte do fundo, onde ainda existe uma caixa d’água, havia, acoplada a e ela banheiros para o pessoal que vinha dos trabalhos no campo se lavar antes de entrar para o prédio.
Sala de detenção em uma escola de trabalhadores?!! Pois é, naqueles tempos de ditadura do Getúlio isso era perfeitamente normal. Afinal, ali as crianças e adolescentes não estavam por vontade própria, assim era preciso força. E essa “sala de detenção” era uma jaula interna, por trás de uma inocente porta de madeira. Hoje ali funciona a sala de xerox.
Ao vê-la na planta, lembrei-me das histórias que o saudoso professor Luiz Natal Bonin contou-me certa vez.
O Mané Facão, como era chamado o interventor Manoel Ribas, nos tempos do Estado Novo, do Getúlio Vargas, lá pelos tempos de 1937, 38, não queria meninos de rua em Curitiba, nem desocupados, nem malandros, vagando pelas ruas da cidade. Assim que apareciam a polícia os recolhia e os conduziam para o reformatório do Cangüiri – se fosse considerado caso grave, para a Ilha das Cobras se fosse condenado, ou para a Escola de Trabalhadores Rurais se fosse caso mais brando, que funcionava aqui onde hoje o Setor de Ciências Agrárias, da Universidade Federal do Paraná.
Havia crianças que eram trazidas pelos pais para aprender uma profissão, ou para terem uma boca a menos para comer. Mas não seria um par de braços a menos para trabalhar?
O caso de A. (omito aqui nomes para evitar constrangimentos) ou Demo como ficou conhecido, era que ele não queria trabalhar, queria ser pintor. PINTOR?!!! O que ele precisava era de enxada! de machado! de foice!!! Pincéis?? palheta? Que nada! Isso era coisa do diabo! Aí foi que sua mãe atentou para o nome que lhe haviam dado: A. o que seria dado ao diabo, ou coisa semelhante… era hostilizado, quase não falava, fugia do trabalho e uma vez o encontraram lendo um “livro sem figuras” debaixo do assoalho do paiol. Quem o ensinara ler? Quem lhe dera o livro? Só podia ser coisa do diabo. Dá-lhe pau em cima do coitado. Uma vez até tentou argumentar que o diabo não era feio, era apenas um anjo que de tão belo ousou desfiar deus, aí o pintam feio, mas não é. Aí é que apanhou mais, herege! Pintam feio? Tome surra. E ele não falou mais, quem o ouviria?
Ele cresceu assim, entre a enxada e o livro, a maldição da mãe e o desconhecimento do pai. Mas comia, a praga, e não queria trabalhar. Assim comia pouco, era magro, quase sem cor, cabelo claro de polaco manchado do sol, alto para sua idade.
Quando fez onze anos de idade, a mãe lhe fez a trouxinha e encarregou o pai de entregar na Escola de Trabalhadores Rurais.
Ao chegar, seu olhos arregalados revelavam espanto e deslumbramento. Não era susto, nem medo, ele já tinha apanhado tanto que os castigos não lhe faziam diferença mais. Seu pai, sem emoção deixou-o, virou as costas e se foi…
Sua adaptação não foi diferente dos outros tantos que a polícia trazia, todos tinham histórias tristes e difíceis; mas alguns – parece, tinham problemas mentais.
Era o caso de Darta, ou Dartão, cujo nome inspirado num os mosqueteiros, os heróis da época do cinema mudo. Mas o nome não lhe assentava, por isso veio o apelido de Dartão, pois maior que os outros 14 irmãos, mesmo os mais velhos.
Dartão era um anormal no que se referia a sexo, masturbava-se com freqüência e em qualquer lugar, perto de qualquer um. O professor Bonin dizia que ele sofria de priapismo. Era forte na sua magreza, diziam que ouvia vozes. Estava na “escola” há seis meses. Os outros meninos tinham medo dele, evitavam-no e não lhe falavam.
Uma noite de inverno, a cerração era tão densa que não se enxergava nem a ponta dos dedos com os braços esticados, parecia que até podia-se corta-la em fatias. As luzes dos lampiões já haviam sido apagadas pelas 20 horas. Todos deviam estar nas camas dormindo. O ronda fiscalizava as camas e a ordem. Mas as de Dartão e Demo estavam vazias, revolvidas como se usadas, mas vazias. Onde estariam? O ronda deu o alarme. Dartão teria raptado o menino e o estaria abusando?
Tocaram o sino, acenderam-se os lampiões, meia dúzia não conseguiu levantar de tão cansados e continuaram dormindo. Todos os outros saíram procurando. Procura, que procura, todo os cantos foram revirados. A cerração não permitia sair para muito longe, mesmo assim a casa das máquinas, o estábulo, o paiol, foram escarafunchados. Mas acharam o Dartão ali do lado de fora do prédio, numa moita de hortênsias, se masturbando. Estava todo babado e molhado da noite, e não parava de manipular-se. Os rondas e os meninos maiores o pegaram – ele não ofereceu resistência, continuava num gozo interminável e insano. Conduziram-no para a sala de contenção. Soltaram o S. que ali estava porque havia roubado queijo da cozinha, que agora precisavam do espaço. Quando Dartão reconheceu a porta de ferro da detenção, surtou. Começou a dar porrada em todos, oito não conseguiram segurá-lo. Veio todo mundo (os que tinham coragem), ficou uma multidão que ora se adensava em volta dele, seguia-se uivos lancinantes e a correria, se estabelecia uma clareira. Enchiam o cara de porrada e ele enchia a todos também.
Até que umas duas horas depois, Dartão quase nu, muito machucado e exausto, deixou-se levar. Empurraram-no porta adentro junto com os três rondas, que por sua vez empurraram o coitado masturbante para dentro da cela, e ele, esboçando uma última reação, tentou segurar a porta de ferro. Não tiveram dúvidas os guardas, bateram-na prendendo sua mão – aquela com que se masturbava, e passaram o ferrolho. Olharam-se com prazer sádico nos olhos inchados de hematomas e sentiram um gozo estúpido, saíram fechando a porta de madeira atrás de si.
Contam que Dartão urrou e uivou durante a noite toda até o dia seguinte, com o dia veio o silêncio. Dizem que nem os pássaros cantavam. O café foi servido atrasado, estranhamente ninguém comentava o assunto.
O professor Bonin chegou na hora do café, com os alunos semi-internos, como de costume. Imediatamente percebeu o diferente, o que estava acontecendo? O ronda contou a sua versão, vesga e quase irreconhecível. O professor mandou soltar imediatamente e dirigiu-se para lá a passos largos e decididos. O ronda abriu a porta de madeira e não conseguiu explicar, boquiaberto, desconexas palavras. Dartão não estava lá. Tinha sumido. Havia marcas na porta onde haviam quebrado a mão do coitado, o cheiro de suor urina e fezes impregnavam fortemente o ar. Mas a porta continuava trancada e ele, nada.
_ E Demo onde está?_ cobrou ou professor. Aí é que os guardas perderam a voz. Com os acontecimentos da noite anterior tinham se esquecido do mesmo.
Nova correria: Todos procurando os dois de novo. Lá pelo meio-dia tinham revirado tudo outra vez, avisado a polícia e nada.
A cozinheira, Dona Satu não participava da busca, pois tinha que dar comida para 700 pessoas, e o almoço já começava atrasado. Foi dela que se ouviu um grito que entrou nos corredores e ecoou no prédio fazendo-o tremer. Quando ela foi pegar carne, naquela geladeira de colocar gelo que era entregue de carroça a cada dois dias, ela encontrou um menino encolhidinho num canto, com um livro (sem figuras) nas mãos e vários tocos de vela queimados até o final. Ele morrera pela falta de oxigênio ao atravessar a noite lendo dentro da geladeira.
Conta-se que os dois foram vistos nas noites de cerração, nunca juntos, vagando pelos corredores ou pelos campos, dizem que não fazem mal a ninguém, mas suas aparências assustam, pois guardam a feições sofridas das suas vidas infelizes. Se você os encontrar, não se assuste, converse com eles, se puder, mas não pergunte seus nomes, pode ser arriscado. Um, é possível que goste se lhe oferecer uma vela, um fósforo ou um livro…. mas, se for o Dartão…”
Autor: Professor Luiz Doni Filho