Desde tempos históricos a famÃlia tem sido concebida como um núcleo formado por vÃnculos afetivos, indispensável para a proteção e o desenvolvimento dos indivÃduos que assim a constituem e para o progresso social. Porém, a famÃlia também pode ser um espaço marcado por tensões, conflitos, desigualdades e violência, no qual as mulheres e crianças são as maiores vÃtimas de uma sociedade machista, arraigada num modelo e uma cultura patriarcal. Desta maneira, quando se fala de violência contra a mulher, as cifras evidenciam que entre um 70-80% destas mulheres são violentadas no interior de seus lares, um aspecto irônico ao considerar que a famÃlia deveria ser um espaço para protegê-las do abuso.
A Violência doméstica contra a mulher é definida na legislação brasileira como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento fÃsico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, em qualquer relação Ãntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”. Embora os homens também possam ser vÃtimas de violência doméstica, as mulheres são por muito as maiores vÃtimas deste tipo de violência interpessoal.
A violência doméstica contra a mulher não é um fenômeno contemporâneo, mas apenas nos últimos 50 anos que esta problemática tem ganhado importância, sendo desenvolvidas polÃticas e estratégias para diminuir sua prevalência na sociedade. Infelizmente, estudos demonstram que ainda é um problema que afeta milhões de mulheres no mundo todo. Assim, a Organização Mundial da Saúde estima que aproximadamente 30% das mulheres do mundo entre 15 e 69 anos de idade são abusadas por seu companheiro. Considera-se que na América Latina 25 a 50% das mulheres sofrem violência doméstica, sendo que o Brasil responde por 40% dos feminicÃdios da região. Segundo dados de 2013, da Secretaria de PolÃticas para as mulheres do Brasil, 38.020 mulheres são agredidas diariamente, sendo os cônjuges, companheiros ou ex-maridos os agressores em 68,8% dos casos, mostrando que essa problemática está longe de chegar a seu fim e que todos os aspectos relacionados devem ser estudados e considerados.
Sabe-se que as sequelas da violência doméstica não estão restritas à s vÃtimas e comprometem todos os membros da famÃlia. A prevalência de crianças expostas a violência doméstica é difÃcil de ser determinada e, geralmente, encontra-se subestimada. Nos Estados Unidos estima-se uma prevalência anual de entre 10% a 20% de exposição das crianças á violência doméstica.
Nas últimas décadas, surgiu a concepção da famÃlia multi-espécie que consiste em um grupo familiar composto por pessoas que reconhecem e legitimam seus animais de estimação como membros da famÃlia. Assim, ao reconhecer que todos os membros da famÃlia podem ser vÃtimas das situações de violência doméstica, a partir da década de 90 começaram estudados sobre o papel dos animais de estimação dentro da violência doméstica. Uma associação entre maus tratos contra os animais e a violência doméstica foi encontrada e nomeada internacionalmente de Link (Elo). Estima-se uma coocorrência de violência doméstica por parceiro Ãntimo contra mulheres e maus-tratos contra os animais entre 46,5% e 71%. Nesta relação os animais de companhia podem ser usados como uma ferramenta de violência psicológica, intimidação e controle da vÃtima humana para que a mesma não denunciasse a situação e não tente sair do ciclo da violência como consequência da preocupação com seu animal de companhia. Estudos têm relatado que aproximadamente 30% das mulheres vÃtimas de violência doméstica e proprietárias de pelo menos um animal de estimação está disposta a adiar sua decisão de procurar ajuda pela preocupação com seu animal, colocando em risco a sua própria integridade.
No Brasil o Link não tem sido muito estudado, nem reconhecido nas polÃticas e estratégias que combatem a violência doméstica. Sendo um aspecto de vital importância ao considerar que, segundo cifras do IBGE, 44,3% dos domicÃlios têm pelo menos um cão e 17,7% pelo menos um gato.
Os animais de estimação, podem fazer parte do ciclo da violência doméstica e serem as primeiras vÃtimas. Dessa forma, a suspeita de maus-tratos contra os mesmos pode ser utilizada como indicador para a detecção e/ou prevenção de outros tipos de violência. Esse reconhecimento permite uma pronta intervenção por parte de uma equipe multiprofissional em saúde, com participação dos médicos veterinários, que podem ser os primeiros, ou únicos, profissionais a ter acesso a situações de abuso no contexto da famÃlia.
Por
RITA DE CASSIA MARIA GARCIA (professora do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná.) e STEFANY MONSALVE BARRERO (pós-graduanda em Medicina Veterinária pela UFPR)